domingo, 25 de julho de 2010

A Estatística no Brasil e no mundo!

Eu respondi algumas perguntas feitas pela arScientia cuja entrevista original está no site http://www.arscientia.com.br/materia/ver_materia.php?id_materia=273.

arScientia: O ensino de Estatística (ao menos como disciplina instrumental nas Humanas e Biológicas) não privilegia a visão histórica quando da discussão de seus conteúdos. Portanto, o aluno se vê em contato com os conceitos de estatística descritiva, probabilidade, curva de distribuição normal, curva de erros e princípio dos mínimos quadrados, apenas para citar alguns exemplos, sem ter a mais vaga idéia do que esses desenvolvimentos representaram em termos de determinados contextos históricos. Quer dizer, não entende que esses conceitos são, na verdade, frutos de determinadas exigências históricas. Quais as razões que podem explicar um ensino da Estatística tão desvinculada de história?

Prof. Gauss Cordeiro: Quando professores com doutorado em Estatística ensinam esta disciplina nas áreas de Humanas e Biológicas, acredito que os seus principais conceitos sejam dados com uma maior ênfase histórica. Na realidade, os principais conceitos da Estatística surgiram efetivamente de problemas reais e eles devem ser sempre mencionados quando o professor for ministrá-los. O princípio dos mínimos quadrados surgiu devido à análise de dados de astronomia e ao problema de se determinar a distância entre as cidades de Berlin e Koln. Os testes de hipóteses surgiram da necessidade de saber se os planetas descreviam órbitas distribuídas aleatoriamente. O problema de determinação da população da França deu origem aos estimadores de razão. Os conceitos de regressão e correlação surgiram com estudos desenvolvidos por Francis Galton sobre a hereditariedade genética. O famoso teste t de Student foi decorrente da tentativa de melhorar a qualidade da cerveja. A análise de variância (proposta por Fisher) decorreu do problema de verificar se havia interação significativa entre as diversas variedades de batatas e fertilizantes. O planejamento de experimentos originou-se do problema de melhoramento de técnicas agrícolas. E por aí vai. Infelizmente, muitos professores ainda ensinam todos esses conceitos sem situá-los devidamente na história.

arScientia: Para a Estatística, do ponto de vista histórico, qual a importância
da mecânica de Newton como modelo de excelência para a Ciência? O que a Revolução Científica representa, para a Estatística, em termos de marco histórico?

Prof. Gauss Cordeiro: O método Newtoniano foi muito importante para desenvolver (por Adam Smith) os fundamentos da Economia como ciência. Ele tornou a Economia compreensível e sistemática a partir de leis gerais análogas às leis gerais dos movimentos dos corpos da Física, elaboradas por Sir Isaac Newton. O seu livro "A Riqueza das Nações", publicado em 1776, pode ser considerado como a origem do estudo da Economia. Curiosamente, no ano seguinte, em 1777, Daniel Bernoulli usa um princípio científico para estimar o parâmetro de uma distribuição a partir de pressupostos científicos básicos à semelhança do método Newtoniano. O princípio de Bernoulli pode ser entendido como a origem do método estatístico de estimação mais conhecido - o método de máxima verossimilhança -, formulado por Fisher em 1912, após 135 anos de Bernoulli descrevê-lo pela primeira vez.

arScientia: Como deve ser realizado o ensino de Estatística em cursos das áreas Humanas e Biológicas? O aluno deve entender com profundidade a matemática envolvida ou deve ser privilegiada a formação dele como um usuário das ferramentas estatísticas? Seria funcional, nas universidades, uma área de Estatística que fosse prestadora de serviços para os profissionais das mais diversas áreas do conhecimento, liberando esses profissionais de anos e anos de estudo matemático de ferramentas das quais eles são meramente usuários?

Prof. Gauss Cordeiro: Nos dias de hoje, acredito que o ensino da Estatística em cursos das áreas de humanas e biológicas deve ser feito com um suporte computacional acessível que seja facilmente entendido por esses alunos, sem entrar em detalhes matemáticos mais profundos, para não assustá-los. A Estatística tem muitos atrativos e pode ser facilmente ensinada nestes cursos com o auxílio de softwares bastante acessíveis como, por exemplo, SPSS e MINITAB, sem precisar discutir os detalhes matemáticos que cercam muitos dos seus conceitos. A Estatística (segundo Rao) pode ser definida por uma soma algébrica de três componentes: Estatística = Ciência + Tecnologia + Arte. Para motivar mais os alunos das áreas de humanas e biológicas e para muitos outros profissionais desta ciência, sugiro que os professores ao ensinar Estatística procurem tentar maximizar as duas últimas componentes. O estatístico teórico é coisa do passado. A computação é essencial para a pesquisa moderna em Estatística e para a colaboração em grande escala com áreas tais como biologia, medicina, ciências sociais, economia e finanças. A pesquisa moderna em Estatística e a prática estão intimamente ligadas à computação.

arScientia: São raros os cursos em Administração, Comunicação e Marketing que, nas disciplinas de Pesquisa Social, oferecem aos alunos os conteúdos de análise multivariada de dados e outras técnicas mais sofisticadas de análise estatística. Normalmente, esses são objetos de estudos nos cursos de pós-graduação ou outros programas avançados? O senhor acredita que essa seja uma medida correta, do ponto de vista de preparo dos alunos para a atividade de pesquisa e para a formação profissional demandada pelo mercado? Essa situação é similar a outros países do mundo ou é uma situação tipicamente brasileira?

Prof. Gauss Cordeiro: Ensinar análise multivariada em cursos de graduação de Administração, Comunicação e Marketing não é uma tarefa fácil, pois a maior parte dos conceitos desta disciplina exigem um conhecimento matemático mais aprofundado. Entretanto, a análise multivariada pode ser, também, ensinada nestes cursos com o auxílio de softwares simples, concentrando-se mais nos seus conceitos e operacionalidade sem entrar propriamente no ferramental matemático. No meu entender, esta situação não é peculiar no Brasil, sendo similar a outros países do Primeiro Mundo.

arScientia: Nos seus primórdios, a Estatística foi chamada de Aritmética Política. Nos dias de hoje, é instrumento fundamental para os profissionais das áreas de pesquisa social. No entanto, ao que parece, o ensino de Estatística nas universidades acontece de forma dissociada dos conteúdos de Metodologia Científica. Aprende-se Estatística e aprende-se Metodologia, mas não se aprende como as duas áreas do saber estão relacionadas. Esse fato pode contribuir para uma visão distorcida da Estatística por parte dos alunos, que acabam por percebê-la como um amontoado de matemática extremamente complexa e sem utilidade? Penso nisso ao lembrar do pavor dos estudantes dessas áreas em relação à Estatística, e à sensação deles que esse é um saber que não tem propósito algum.

Prof. Gauss Cordeiro: Com a informatização da sociedade, as aplicações da Estatística atingiram níveis nunca antes sonhados. Para os profissionais das áreas sociais, o uso da Estatística é imprescindível para compreender e tirar conclusões das pesquisas sociais. Certamente, o ensino de Estatística hoje, nas universidades, acontece muitas vezes de forma dissociada dos conteúdos de metodologia científica, mas acredito que, com o tempo, esta dissociação será reduzida. Cabe aos professores apresentar a Estatística de forma atraente aos profissionais das áreas de pesquisa social. Na minha experiência, isso pode ser feito através de inúmeros exemplos elucidativos. Gostaria de enfatizar que da década de 60 até a primeira metade dos anos 70, a Estatística no Brasil era o "patinho feio" das ciências exatas. Os tempos mudaram e, com as inovações tecnológicas, principalmente na área computacional, a Estatística no Brasil - em menos de quatro décadas -, se transformou num "belo cisne". Acredito que estamos pari passu no País com a física, química, matemática, informática, economia e algumas engenharias, em termos de qualidade da pesquisa desenvolvida, perdendo tão somente em quantidade pelo simples fato do nosso capital humano ser ainda inferior ao destas outras áreas. O amadurecimento da Estatística no País, irá minimizar vários entraves no ensino desta área aos alunos com pouco conhecimento matemático.

arScientia: Costumamos considerar os Estados Unidos e a Europa como centros irradiadores do conhecimento, ficando o restante do mundo na condição periférica em termos de produção do saber. No caso específico da Estatística, os desenvolvimentos dos pesquisadores da Índia são exceção ou apenas confirmam essa tradição já conhecida de centro-periferia?

Prof. Gauss Cordeiro: Os principais conceitos da Estatística moderna foram originários na Inglaterra. A parte mais significativa do desenvolvimento da Estatística ocorreu nos primeiros 20 anos do século passado e deve-se, principalmente, a esse País. A Índia por ter sido ex-colônia britânica beneficiou-se enormemente da sua interação científica com o Reino Unido e alguns dos estatísticos mais famosos são indianos. O mais importante deles foi Mahalanobis que criou o Instituto Indiano de Estatística. Em 1924, ele trabalhava em experimentos agrícolas, em grandes planos amostrais e em estratégias para prevenir enchentes e conheceu Ronald Fisher (com quem manteve uma grande amizade por longo tempo) gerando frutos positivos para a Estatística na Índia.

arScientia: Atualmente, quais países são considerados centros de excelência na produção do conhecimento estatístico? Como o Brasil se situa nesse cenário?

Prof. Gauss Cordeiro: Os Estados Unidos e a Grã Bretanha lideram a pesquisa científica na área de Estatística. O Brasil tem seguramente liderança na América Latina, mas estamos ainda muito distante desses países em termos de capital humano e da quantidade da pesquisa desenvolvida. O "Canadian Journal of Statistics" publicou um grande levantamento em termos de publicações em periódicos internacionais, entre 1985 e 1996, e as oito primeiras posições foram, obtidas, respectivamente, por: Estados Unidos, Grã Bretanha, Canadá, Austrália, Alemanha, França, Japão e Holanda. A Índia ficou em 9ª posição mundial e o Brasil em 23ª posição. Não deixa de ser uma posição incômoda se notarmos que somos a 10ª economia mundial em termos de poder de paridade de compra. Infelizmente, o capital humano qualificado de Estatística no País é ainda muito reduzido. O trabalho realizado pela Associação Brasileira de Estatística (ABE) (site www.redeabe.org.br) tem sido muito importante para o desenvolvimento da área de Estatística no Brasil e na América Latina. Entretanto, convém enfatizar, que esta associação só foi fundada 150 anos após a Royal Statistical Society (da Inglaterra) ter sido criada.

arScientia: Quais são os temas que têm sido alvo de atenção especial da Estatística nos dias de hoje? Quais são os estudos de "ponta" nessa área?

Prof. Gauss Cordeiro: No contexto mundial, a Estatística Matemática e a Probabilidade têm atraído inúmeros pesquisadores nos dias de hoje e muitos dos estudos nestas sub-áreas têm sido de ponta. Saliento que o número de pesquisadores brasileiros envolvidos nestas subáreas é pequeno face à sua importância no contexto mundial. Vários temas de concentração da Estatística estão em moda atualmente, entre os quais poderei citar alguns: teoria do caos, "data mining", KDD ("Knowledge Discovery in Databases"), redes neurais, sistemas híbridos, modelagem em finanças e economia, estatística computacional, algoritmos genéticos, lógica nebulosa ("fuzzy logic"), sistemas especialistas, "symbolic data analysis", modelos estocásticos em genética e DNA, reconhecimento de padrões e processamento de sinais e imagens, "Wavelets", física estatística, otimização estocástica, "bootstrap", inteligência computacional, modelos dinâmicos, análise de riscos, métodos MCMC e modelos ARCH. Acredito que devo ter me esquecido de citar vários outros importantes. Enfatizo que a inteligência computacional tem sido utilizada largamente na construção de sistemas inteligentes como suporte à decisão e otimização, modelagem, controle e automação industrial, reconhecimento de padrões e "data mining", entre outros, obtendo, em muitos casos, uma eficiência superior àquela obtida por métodos convencionais.

arScientia: Em tempos de eleição, o vocabulário relativo às pesquisas de opinião pública passa a fazer parte do cotidiano de todos. Para o cidadão, no entanto, fica cristalizada uma opinião que é fruto apenas do acerto ou erro dos institutos de pesquisa. Muitas vezes, ele acaba concluindo que pesquisa de opinião pública é apenas um recurso de propaganda. Essa percepção é resultado somente das dificuldades do jornalismo científico em explicar ao leitor os limites das ferramentas estatísticas?

Prof. Gauss Cordeiro: Muitas pessoas pensam que a Estatística só serve para prever o percentual de votos que um candidato terá ao participar de uma eleição. Muitos institutos de pesquisa de opinião pública adotam procedimentos de amostragem por quotas e, nesse caso, não há como se estimar com precisão as margens de erro nas pesquisas eleitorais. No Boletim 64 da ABE, 2º quadrimestre de 2006, tem um artigo dos professores José Carvalho e Cristiano Ferraz, ilustrando bem a falsidade das margens de erro de pesquisas eleitorais baseadas em amostragem por quotas; muitos institutos de pesquisa erram nas previsões eleitorais por problemas como esse. Com a informatização da sociedade, a Estatística alcançou níveis nunca antes sonhados. Há cerca de 30 anos, sem os recursos da informática existentes hoje, fazia-se estatística por interesses acadêmicos (pesquisa e ensino), para aplicações a grandes áreas bem definidas (biologia, censo demográfico, economia, gestão governamental, medicina e tecnologia) ou por diletantismo. Nos dias atuais, com o auxílio sempre crescente da informática, as aplicações da estatística se estendem a praticamente todas as áreas e subáreas do conhecimento. Muitas das decisões do dia-a-dia se resumem a problemas de cunho puramente estatístico. Encontramos, frequentemente, fazendo pesquisa em Estatística de bom nível, ex-administradores, ex-agrônomos, ex-cientistas sociais, ex-economistas, ex-engenheiros, ex-físicos, ex-matemáticos, ex-médicos, ex-químicos, ex-etc. Entretanto, dificilmente encontraremos ex-estatísticos. Tenho firme convicção que a Estatística está se tornando um atrativo das outras áreas.

arScientia: Do ponto de vista da história da Estatística no Brasil, quais são os maiores marcos? Quais as perspectivas para a área nos próximos anos?

Prof. Gauss Cordeiro: Entendo que a fundação da Associação Brasileira de Estatística (ABE), em 7 de setembro de 1984, foi fundamental para promover e alavancar as atividades de ensino e pesquisa em Estatística no País. A ABE é responsável por várias reuniões especializadas nacionais, como as escolas de modelos de regressão e de séries temporais e econometria e o encontro Bayesiano, as quais produzem uma grande interação entre os pesquisadores brasileiros com efeitos multiplicadores em todo o Brasil e na América Latina. Além destas reuniões, a ABE promove, a cada dois anos, o Simpósio Nacional de Probabilidade e Estatística (SINAPE), com uma média superior a 600 participantes por reunião. Um outro fator primordial para o crescimento da pesquisa de ponta em Estatística no País foi a consolidação dos cursos de pós-graduação em Estatística na USP (São Paulo, Piracicaba e São Carlos), UNICAMP, UFRJ, UFPE, UFMG, UFSCar, ENCE e em outras instituições menores. A pesquisa em Estatística está crescendo a passos largos em todas estas instituições. Convém aqui enfatizar que a pesquisa teórica em Probabilidade no Brasil tem prestígio internacional, destacando-se suas atividades na USP, UNICAMP, IMPA e CBPF (RJ). Acho que as perspectivas para a área de Estatística Aplicada no País são muito boas, sobretudo na bioestatística, medicina (diagnóstico, prognóstico, ensaios clínicos, genética e DNA) e epidemiologia, economia (com ênfase especial em estudo de mercado) e finanças, biometria, sociometria, agricultura (introdução de novas técnicas na experimentação agrícola), indústria e negócio (controle de qualidade, previsão de demanda, gerenciamento eficiente) e políticas de decisão do governo.

arScientia: Qual pergunta os estatísticos do século XXI gostariam de ver respondida?

Prof. Gauss Cordeiro: No médio prazo, a Estatística deverá entrar pesado em várias áreas da medicina como automação de processos de diagnóstico. Ela terá nos próximos anos um papel crucial para prognosticar riscos de pacientes desenvolverem determinadas patologias, tendo como base dados de exames clínicos e laboratoriais e o estudo do DNA. Modelos e métodos estatísticos sofisticados possibilitarão, num futuro próximo, desenvolver sistemas especialistas de auxílio ao diagnóstico clínico. Acredito que a possibilidade de cura do câncer deverá passar por métodos e modelos estatísticos. Quando visitei, há cerca de 10 anos, o Hospital M D Anderson, em Houston, Texas, um dos mais especializados dos EUA no tratamento do câncer, verifiquei que o combate a qualquer tipo (e grau) desta patologia seguia protocolos bem definidos com o suporte do grupo de bioestatística deste hospital.

2 comentários:

  1. Aprendo estatística constantemente, apesar de ser apenas Bacharel, e fico maravilhado com esta Arte "ESTATÍSTICA", comprovo dia após dia, os elogios tecidos pelo então Prof. de Análise de Dados Categorizados (Celso) à seu respeito. Tenho apenas que agradecer as suas contribuições científicas, pois sou um homem realizado com minha profissão. Tenha certeza que o meu enriquecimento profissional passa pelos seus brios de dissertar a "Arte". Excelente entrevista, denota tudo de atual. Parabéns Professor Gauss. Ass: Eliezer Pinto - UFAM

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  2. É muito bom a gente saber que existem no Brasil estatísticos como você, faço Bacharelado em Estatística pela UFPI e fico muito motivado lendo suas entrevistas. A Estatística Brasileira agradece por ter-te no rol dos seus profissionais,
    valeu!!

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